A medida do Papa Francisco é de grande importância estratégica. Ela corrige o equilíbrio. Ela salvaguarda a integridade do Concílio. Ela rejeita decididamente reivindicações frívolas (“não era isso que o Concílio queria”; “a liturgia reformada é irreverente e heterodoxa”) e chama todos de volta para um único caminho comum.
O artigo é de Rita Ferrone, escritora e pesquisadora estadunidense, autora de vários livros sobre liturgia, incluindo “Liturgy: Sacrosanctum Concilium” (Paulist Press), publicado por Commonweal, 23-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O dia 16 de julho de 2021 foi um grande dia para o Rito Romano e para o legado do Concílio Vaticano II. Finalmente, depois de anos acomodando aqueles que não gostam ou de fato rejeitam as reformas litúrgicas do Concílio, a autoridade máxima da Igreja Católica deu um passo definitivo para restabelecer os ritos reformados como normativos para toda a Igreja de rito latino, sem exceção.
O Papa Francisco, em seu motu proprio Traditionis custodes, não apenas revogou firmemente o motu proprio Summorum pontificum (2007) do Papa Bento XVI, que tinha “liberado” os ritos mais antigos, permitindo que eles fossem celebrados por qualquer padre a qualquer momento, mas também declarou e estabeleceu que a liturgia reformada é “a única lex orandi [lei da oração]” da Igreja hoje.
Isso põe fim à bifurcação do Rito Romano que o Papa Bento XVI endossou quando escreveu o Summorum pontificum. Ele inventou o termo “Forma Extraordinária” para se referir aos ritos mais antigos e chamou os ritos reformados de “Forma Ordinária”. O Rito Romano nunca havia existido em duas formas ao mesmo tempo, mas era isso que ele imaginava. Ele exortou os bispos a confiarem que essas “duas formas” do Rito Romano conviveriam pacificamente e se enriqueceriam mutuamente. Depois de 13 anos, porém, ficou evidente que esse sonho não se concretizaria.
Claramente, alguns indivíduos encontram um gozo sereno ao assistirem à missa de acordo com os ritos mais antigos e não têm nenhuma outra agenda. Mas, em geral, a abertura de mais espaço para os ritos mais antigos aprofundou o conflito na Igreja e levou à politização da Eucaristia. Isso sempre foi um perigo.
Os movimentos tradicionalistas – tanto aqueles que chegaram ao cisma, como os seguidores do arcebispo Marcel Lefebvre, quanto aqueles que permaneceram em comunhão com Roma – estão há muito tempo associados a regimes políticos de extrema direita e autoritários. Desde o esforço para restaurar a monarquia na França (uma causa sem esperança), à supressão dos povos indígenas do Brasil (um problema contínuo), tudo ocorria sob a bandeira do tradicionalismo católico. O Papa Bento XVI não acreditava que o perigo existisse, mas ele existia.
A oposição ao Papa Francisco também encontrava uma base em comunidades tradicionalistas. Seus ensinamentos sobre o casamento e a família, seu chamado ao acompanhamento pastoral e, especialmente, seu compromisso com a responsabilidade ecológica e a justiça econômica eram virulentamente contrariados em tais círculos. Não é por acaso que o cardeal estadunidense Raymond Burke, um dos antagonistas mais abertos do papa, é um capelão mundial das comunidades católicas tradicionalistas, ou que o austríaco que jogou a estátua da Pachamama no Rio Tibre durante o Sínodo da Amazônia era um tradicionalista, ou que, quando o descontente ex-diplomata vaticano, o arcebispo Carlo Maria Viganò, tentou destituir o Papa Francisco, ele se aliou aos tradicionalistas.
Mesmo além do escândalo de uma série de ataques contra um papa reinante, está em jogo uma luta política pelo legado duradouro de um Concílio Ecumênico. A abertura do Vaticano II ao mundo – o seu compromisso com o ecumenismo, o diálogo inter-religioso e o discernimento dos sinais dos tempos – tem sido duramente criticada e rejeitada pelos defensores dos ritos mais antigos.
O Papa Francisco, sem dúvida, tem ouvido falar dessas tais tensões e dificuldades há muito tempo, mas um ponto de virada foi alcançado quando ele encomendou uma pesquisa mundial de bispos para avaliar o Summorum pontificum. Os resultados da pesquisa foram profundamente perturbadores, obrigando-o a agir, disse ele em uma carta que acompanha o seu motu proprio.
As respostas não foram publicadas. Apenas um documento vazou: o relatório resumido da França. Era um texto justo, mas também crítico. Crucialmente, ele observava que os objetivos do projeto do Papa Bento XVI – reconciliação e enriquecimento – não foram alcançados. Com uma bela redação, os bispos franceses relataram que aqueles que desejavam os ritos mais antigos se “pacificaram”, mas não se reconciliaram.
Certamente, vimos resultados prejudiciais nos Estados Unidos, que tem a maior proporção do mundo de locais que oferecem os ritos mais antigos. Em vez de promover maior harmonia e proximidade com a Igreja universal, a ampla disponibilidade dos ritos mais antigos tem sido usada como uma oportunidade para criar uma “Igreja dentro da Igreja”, uma comunidade separada da principal.
Práticas pastorais duvidosas acompanharam esse desdobramento, como o fato de usar o Catecismo de Baltimore em vez do Catecismo da Igreja Católica, ou de ler a Bíblia de Douay-Reim em preferência às traduções modernas das Escrituras. Não é apenas uma questão de rendas e de latim. Um mundo de pensamento reacionário também está sendo cultivado.
Não se pode exagerar o barulho que a liberação dos ritos mais antigos introduziu nos debates litúrgicos, embora o número real de tradicionalistas permaneça pequeno. Um fluxo constante de críticas brotou de enclaves tradicionalistas que contestam as decisões litúrgicas decorrentes da reforma, como o uso da língua vernácula, a Comunhão recebida nas mãos, as mulheres no presbitério e o padre de frente para o povo na Eucaristia. Essa oposição barulhenta chama a atenção e causa distração.
Um problema mais grave é que alguns adeptos dos ritos mais antigos semearam dúvidas sobre a validade da reforma litúrgica em geral e propagaram a visão errônea de que a liturgia reformada representa uma traição à ortodoxia e um afastamento da “verdadeira Igreja”. Em vez de um abrandamento, houve um endurecimento da oposição ideológica ao Concílio como um todo. Não se trata de uma questão trivial. Quando alguém ataca a reforma litúrgica, ataca o Concílio.
Essa situação também está piorando. Recentemente, as principais vozes entre os tradicionalistas nos Estados Unidos abandonaram totalmente o projeto de “enriquecimento mútuo” de Bento XVI. Não pode haver paz real com as novas formas litúrgicas, argumentam eles, porque o rito reformado é fundamentalmente falho, uma criação modernista. Não é nem mesmo um rito, afirmam eles, mas uma mera “construção”.
Nesse contexto, a medida do Papa Francisco é de grande importância estratégica. Ela corrige o equilíbrio. Ela salvaguarda a integridade do Concílio. Ela rejeita decididamente reivindicações frívolas (“não era isso que o Concílio queria”; “a liturgia reformada é irreverente e heterodoxa”) e chama todos de volta para um único caminho comum. Ela não eliminará conflitos ou desacordos políticos na Igreja, mas priva os tradicionalistas da possibilidade de usar a Eucaristia como um centro de resistência ao Concílio e a sua legítima implementação.
Alguns acusaram o Papa Francisco de ter agido autocraticamente ao revogar o Summorum pontificum, mas, na realidade, as suas ações foram muito mais colegiais do que as que os seus antecessores tomaram ao expandir a disponibilidade dos ritos mais antigos. Uma breve olhada na história revela isso.
Em 1980, quando o Papa João Paulo II pensou em conceder um indulto para a celebração da Missa Tridentina, ele fez uma pesquisa com os bispos do mundo inteiro. A maioria esperava que isso causasse divisão e se opôs. Apenas 1,5% foram a favor. Mesmo assim, ele seguiu em frente. Ele esperava efetuar uma reconciliação com o arcebispo Lefebvre e os seus seguidores, que romperam com a Igreja porque não aceitavam o Vaticano II. Essa abertura não teve sucesso.
Quando João Paulo II avaliou se deveria ampliar essa permissão em 1988, ele não perguntou aos bispos. Em vez disso, ele consultou a Congregação para a Doutrina da Fé, chefiada pelo então cardeal Josef Ratzinger. Mais uma vez motivado pela esperança de cura de uma ferida causada pelo cisma (razão pela qual o motu proprio se chama Ecclesia Dei afflicta), ele expandiu ainda mais o acesso. Mesmo assim, não houve nenhuma reconciliação com o grupo de Lefebvre, a Fraternidade São Pio X (FSSPX).
Quando Bento XVI emitiu o Summorum pontificum em 2007, ele não realizou nenhuma pesquisa, mas parece que alguns bispos expressaram dúvidas e tentaram dissuadi-lo. Ele os ignorou. A história se repetiu; as aberturas à FSSPX foram novamente rejeitadas. Ele disse (em 2007) que, em três anos, os bispos poderiam avaliar como o Summorum pontificum estava indo. Mas nenhuma avaliação foi solicitada até 2020, quando Francisco enviou a sua pesquisa.
Depois que o Papa Francisco consultou os bispos do mundo, ele viu tudo isso claramente. Era hora de dar um basta nisso. Consequentemente, a partir do dia 16 de julho de 2021, não há mais “Forma Extraordinária” e “Forma Ordinária”. Existe apenas uma única forma de Rito Romano: a liturgia, do modo como foi reformada por decreto pelo Concílio Vaticano II. O Papa Francisco reafirmou aquilo que seus antecessores também têm dito desde o Concílio: essa reforma é uma expressão da tradição católica viva.
A tradição não é a preservação de coisas velhas, é uma realidade vital, guiada pelo Espírito Santo que atua por meio da Igreja e da sua liderança. Francisco está dizendo que, se você quer encontrar a liturgia tradicional, aqui está ela – nos ritos reformados. Ele não baniu totalmente os ritos mais antigos. Os livros litúrgicos anteriores à reforma ainda podem ser usados para celebrar a liturgia (de acordo com a edição de 1962), mas em circunstâncias limitadas, não em paróquias, e não por capricho de padres individuais. Cabe ao bispo local decidir quando e onde essas liturgias podem ser celebradas e por quem.
O Papa Francisco deixou claro que os bispos não devem dar essa permissão a alguém que contesta a legitimidade e a ortodoxia da reforma ou que rejeita a autoridade do papa e dos bispos. Qualquer padre ordenado depois do dia 16 de julho de 2021 que deseje celebrar os ritos mais antigos deve obter a permissão do seu bispo e de Roma.
O bispo também decide por quanto tempo essas celebrações podem continuar. Vários bispos estadunidenses já estão respondendo ao Traditionis custodes como se tivessem carta branca para continuar usando os ritos mais antigos indefinidamente. Isso não é verdade. Francisco disse especificamente que o trabalho deles é o de guiar essas comunidades que atualmente seguem os ritos mais antigos a um estado de espírito e de alma no qual possam celebrar a liturgia principal da Igreja com total e sincero consentimento. Esse é o objetivo – não a pacificação, não a perpetuação dos ritos mais antigos, mas sim a adoção da liturgia reformada como uma “expressão unitária do Rito Romano”.
O bispo, como guardião da tradição, é obrigado a exercer a sua autoridade em consonância com a Santa Sé, e isso significa caminhar na direção traçada pelo Papa Francisco.
A maioria dos católicos nunca se opôs à iniciativa de Bento XVI porque, segundo eles, ela dizia respeito a um pequeno grupo de pessoas e não os afetaria pessoalmente. Em uma época em que o individualismo e o consumismo parecem ser o estado normal das coisas, não parecia estranho fornecer alternativas de boutique para gostos litúrgicos diferentes, mesmo que isso incluísse o gosto por uma liturgia que havia sido substituída por uma reforma legal exigida por um Concílio Ecumênico.
Mas a liturgia não é apenas uma questão de gosto pessoal. É uma questão de fé e de obediência. Ela pertence ao coletivo, razão pela qual está consagrada na lei e sujeita à autoridade.
Vale a pena lembrar que estabelecer a liturgia reformada como a “expressão unitária do Rito Romano” não compromete de forma alguma o compromisso da Igreja com a inculturação, como bem observou o liturgista suíço Martin Klöckener. A inculturação é uma questão totalmente diferente, porque, em todos os casos, o Rito Romano reformado é a base da inculturação.
O Papa Francisco quer fazer avançar as reformas litúrgicas do Vaticano II. Sua recente decisão de abrir os ministérios instituídos do leitorado e do acolitado para as mulheres é uma prova disso, assim como a sua ênfase na Palavra de Deus, na mistagogia e na catequese litúrgica.
Por meio da sua abertura à inculturação, a sua decisão sobre lavar os pés das mulheres na Quinta-Feira Santa, o fato de devolver a autoridade sobre as traduções litúrgicas aos bispos e até mesmo a restrição das missas privadas na Basílica de São Pedro em favor da concelebração, ele avançou na reforma.
O último bispo italiano que participou do Concílio Vaticano II ainda vivo é o bispo emérito de Ivrea, Luigi Bettazzi, de 98 anos. Ele também é o último signatário vivo do “Pacto das Catacumbas” (uma promessa feita por 40 Padres conciliares a adotar a pobreza, a humildade, a caridade, a justiça e o testemunho do Evangelho). Quatro dias depois de Francisco promulgar o seu motu proprio, e certamente com esses eventos em mente, Dom Bettazzi disse: “Estamos no meio do rio, mas lembremos que ainda temos que cruzá-lo”. O rio é a plena implementação do Vaticano II.